Monday, January 22, 2007

Alice no País das Porcarias - Terceira e última parte

Alice caminhou até não aguentar mais os pés, parou perto de um ribeiro e refrescou-se. Tirou os sapatos, lavou os pés, e enquanto levava as mãos em concha à boca, viu vários reflexos na água, olhou para trás e viu muitas flores, com expressão feminina. Com expressão de mulheres vaidosas que colocam muito baton, que usam roupas com brilhantes, flores com alma de mulheres vaidosas.

Alice começou a sentir um formigueiro nos pés e nas mãos, ou seus pés estavam a transformar-se em raízes, as mãos em folhas, os cabelos em pétalas. A menina tinha bebido água do Lago das Flores, estava a transformar-se em flor, e as outras flores riam às gargalhadas ao olhar para ela, Alice não se transformara em gladíolo, nem em rosa, nem em orquídea, a Alice transformou-se em flor campestre, ninguém sabia o nome daquele florzinha, era pequena e rasteira, com ar frágil, de tonalidade laranja, e curiosamente, tinha aroma a laranja.

As flores vaidosas tocavam com as pétalas no chão de tanto rir da pequena Alice.
A menina começou a ficar furiosa com a atitude daquelas flores:

“Parem de rir, e digam-me como posso voltar à minha forma de menina!”

“Querida...só quando alguém se der ao trabalho colocar os joelhos no chão e rabo o no ar para te poder cheirar...hahahahaha!!!” e riam, riam muito.

“Só quando alguém me cheirar? Mas sou tão pequena, como é que alguém me vai descobrir, no meio dos vossos pés altos e das vossas pétalas coloridas e vistosas?!”

Alice choramingou uma gota de orvalho e começou a cantar baixinho, uma bonita canção do Tom Jobim:

“Meus olhos cansados procuram
Descanso no verde do mar
Como eu procurei em você
O descanso que a vida não dá
Seria talvez bem mais fácil
Deixar a corrente levar”

Nisto, e para grande espanto, eis que do nada surge a continuação da canção iniciada pela menina, a canção saía agora da boca de alguém que não era uma flor.

“Quem sabe no fundo eu quisesse
Que tu me viesses salvar
Depois lá no alto das nuvens
Você me ensinava a voar
Mais tarde no fundo da mata
Você me ensinava a beijar
Meus olhos cansados do mundo
Não se cansam de contemplar
Tua face teu riso moreno
Teus olhos do verde do mar
Meus olhos cansados de tudo
Não cansam de te procurar
Meus olhos procuram teus olhos
No espelho das águas do mar”

Alice espreitou por entre os pés altos das flores e conseguiu avistar um ser mágico detentor de uma aura tão colorida como ela jamais vira. Ele era um homem belo, de olhos infantis perdidos no vazio e sorriso maroto. Não caminhava, levitava sobre a vegetação verdejante, tinha dezenas de borboletas de todas as cores a voar à sua volta, e à sua frente a abrir caminho um unicórnio branco.

A Alice ficou tão atordoada, que por momentos não conseguiu continuar a música. Estava perdida entre mil milhões de pensamentos e emoções, foi reacordada quando ouviu:

Menina flor: volta a cantar para te encontrar, para te poder cheirar, para te poder transformar, para te poder beijar, para te poder levar e salvar.
E timidamente Alice continuou a sua canção preferida, na esperança de ser encontrada.

“Supõe que eu estivesse morrendo
Mas não te quisesse alarmar
Pensei que você não soubesse
Que eu me queria matar
Meus olhos cansados de tudo
Não cansam de te procurar
Meus olhos procuram teus olhos
No espelho das águas do mar”

Alice colocou-se nas pontas das suas raízes, enquanto as flores vaidosas faziam de tudo para esconde-la daquele ser mágico polvilhado de borboletas e acompanhado do seu fiel unicórnio.

Ele chegou perto da menina flor, passou por todas as outras flores altivas e arrogantes, que esqueceram todas as regras de etiqueta das flores nobres e se viraram na direcção do príncipe do “não sei onde”, tal qual faz um pagão girassol. O príncipe não lhes ofereceu a mínima atenção, porque sentiu um cheiro a citrinos que pairava no ar, sentiu o cheiro da menina flor. Afastou as flores de cheiro enjoativo, e encontrou Alice.

Tentou puxa-la levemente pelo caule, depois tentou desenterrar a flor, assim que conseguiu extraí-la da terra, levou-a ao nariz, cheirou-a e finalmente beijou delicadamente as pétalas laranja. Em segundos a Alice voltou à sua forma de menina.

“Obrigada!”, disse Alice.
“Não tens de quê, este é o meu caminho, vou entrar neste lago para voltar a casa!
Tu também és uma atlante, certo?”
“Atlante? Eu? Não, acho que não. Eu sou a Alice vim de lá de cima.”

O Atlante franziu a sobrancelha.

“Não és Atlante? Então como sabes a música chave que dá acesso à Atlântida?”

“Gosto do Tom Jobim!”, respondeu Alice.

“E o que fazes aqui? Estás perdida, há quanto tempo andas por aqui? Queres voltar para casa, menina? Precisas da minha ajuda?”

Alice ouviu todas as questões, na última pergunta feita pelo Atlante, rebentou em lágrimas. Abraçou o príncipe e contou a sua história, disse-lhe que estava farta de casa, que queria viver muito e muito intensamente, que queria ver todas as cores, cheirar todos os cheiros, soborear todos os sabores, mas que de facto o país das maravilhas não era o local ideal para viver, assim como a sua casa. Explicou que se sentia perdida, que não sabia para onde ir.

Permaneceram abraçados, envoltos em borboletas.

O Atlante limpou as lágrimas da menina, segurou-a pela cintura e sentou-a no dorso do unicórnio.

“Alice, vem comigo!”
“Para onde?” Respondeu ela a choramingar..."
“Vem comigo para a Atlântida, é um lugar belo, vem...vamos!”

Ela ficou reticente, e permaneceu o resto da tarde, e o resto da noite sentada no dorso do unicórnio a falar com o Atlante que estava sentado no chão de pernas cruzadas.
Alice consentiu em viajar com o Atlante, na verdade estava encantada com aquele ser que tinha vindo de um outro lugar distante.
O Atlante tirou a Alice de cima do unicórnio, antes dos pés da menina tocarem o chão soltou-se um beijo terno e um abraço caloroso.

Antes de iniciarem a viagem, o Atlante explicou que a menina não podia fazer a viagem ao seu lado, mas que teria de viajar no seu interior, dentro do Atlante. A viagem era submarina, e a Alice não estava preparada para uma viagem daquela espécie.
Explicou-lhe ainda que nada tinha de fazer a não ser perder-se no seu olhar, e foi o que aconteceu.
Olharam-se fixamente por longos minutos, até a pequena se incorporar por completo no corpo do príncipe Atlante, em pouco tempo as almas destas criaturas se fundiram numa só.
O Altante chamou o seu unicórnio, ele era o único que sabia o caminho para a Atlândida, entraram pé ante pé no Lago das Flores, as inúmeras borboletas que os acompanhavam, transformaram-se em peixes tropicais igualmente coloridos. E assim, iniciou-se uma longa viagem.

Ao fim de alguns dias chegaram à porta que dava acesso à Atlântida, o Atlante cantou a canção que servia de palavra chave, a canção que tinha ouvido dias antes na voz da doce Alice.

“Meus olhos procuram teus olhos
No espelho das águas do mar”

Depois de entrar na Atlântida, o príncipe continuou a cantar a música, em cada verso que cantava ele sentia um pouco da Alice, foi ficando com muitas saudades da menina que cantava Tom Jobim, da menina que fora uma flor pequena, laranja e que possuía um cheiro agradável a citrinos, da menina que chorou e soluçou no dorso do unicórnio.

E de tantas, mas tantas saudades ele chorou, verteu duas lágrimas dos seus imensos olhos azuis de Atlante, e das duas lágrimas a Alice renasceu, e tomou a sua forma de menina.

E foram felizes para sempre?

Não...! Porque se apaixonaram, amaram, reproduziram-se.
Quiseram divorciar-se ao fim de uns três anos. Foram a tribunal, não chegavam a nenhum acordo quanto à tutela dos dois rebentos, do unicórnio de estimação e dos peixes que se transformavam em borboletas ou das borboletas que se transformavam em peixes, neste caso a ordem é irrelevante.
Depois de separados, depois dos rebentos e dos bichanos terem sido convenientemente distribuidos pelos dois com a grande ajuda do tribunal, chegaram à conclusão que se amavam de forma incondicional.
E perguntam vocês novamente, e depois? Foram felizes para sempre?
Não...porque o grande amor esconde sempre uma pontinha de tristeza.